Sem regras federais de fiscalização, pilhas de rejeito de mineração substituem barragens e avançam pelo país

Após as
tragédias de Mariana e Brumadinho, mineradoras têm priorizado opção com menor
potencial de dano em vez das tradicionais barragens. Em dezembro, montanha de
rejeitos desmoronou em MG e tirou mais de 250 pessoas de casa. Governo federal
prevê regulamentação da prática até 2026.
A confeiteira
Lexandra Machado estava no quintal de casa quando viu uma montanha de 80 metros
de altura deslizando a poucos quilômetros, na manhã de 7 de dezembro de 2024,
no povoado de Casquilho de Cima, em Conceição do Pará (MG). O que ela via era o
rompimento de uma pilha de rejeitos de uma mineradora.
“Fiquei tão
atordoada, que comecei a gritar. Logo me lembrei de Brumadinho. Após uns 40
minutos, os funcionários da empresa passaram de carro, dizendo que era para
sairmos de casa”, conta Lexandra.
As pilhas de
rejeito têm sido utilizadas pelas mineradoras como uma alternativa mais segura
às barragens a montante, que foram proibidas no Brasil após a morte de quase
300 pessoas nas cidades de Brumadinho e Mariana, em 2015 e
2019.
Embora tenham
menor potencial de dano, ainda não há regulamentação federal e protocolo de
fiscalização, o que também torna as pilhas de rejeitos um risco, segundo
especialistas. O governo federal prevê definir regras para a prática até 2026.
O deslizamento
em Conceição do Pará atingiu 7 casas e, quatro meses depois, nenhum morador
pôde voltar ao povoado. Essa foi a quarta ocorrência envolvendo pilhas desde
2018. Em um dos casos, no município de Godofredo Viana, no Maranhão, uma
rodovia ficou interditada por seis dias.
Mais pilhas do que barragens
Desde 2019, as
barragens do tipo a montante -- estruturas nas quais os rejeitos da mineração
são depositados em camadas sucessivas -- são proibidas no Brasil, por que estão
mais suscetíveis a acidentes.
A mudança na
legislação ocorreu após os rompimentos em Mariana e Brumadinho. A partir de
então, a disposição dos resíduos em pilhas passou a dominar o setor de
mineração, de acordo com o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de Minas
Gerais.
Dados da Vale,
a maior mineradora do país e responsável pelas barragens que romperam em Minas
Gerais, mostram que houve aumento no número de pilhas de rejeito. Hoje, 70% dos
rejeitos da mineradora estão armazenados em pilhas e não em barragens. Esse
número era de 40% em 2014.
Já a Samarco,
outra responsável pelo rompimento da barragem em Mariana, filtra e empilha
atualmente cerca de 80% dos rejeitos de minério que produz, uma mudança que vem
sendo feita desde 2020.
As pilhas são
como montanhas de lixo da mineração, formadas pelo material sem valor econômico
que resta após a lavagem do minério e a drenagem da água. Já nas barragens, o
rejeito é armazenado com água, formando uma espécie de lama. Há, ainda, as
pilhas de estéril, formadas principalmente pela areia retirada do solo até se
chegar ao minério.
De acordo com
especialistas ouvidos pelo g1, algumas pilhas que foram
licenciadas -- ou que estão em processo de licenciamento no Brasil -- poderão
alcançar mais de 200 metros de altura, o que eles consideram um grande risco,
principalmente porque essas estruturas não são regulamentadas ou monitoradas
como as barragens passaram a ser depois das tragédias em Minas Gerais.
De acordo com o
engenheiro Júlio Grillo, ex-superintendente do Ibama de MG, o material seco que
é depositado nas pilhas tende a se acomodar mais rapidamente e alcança uma área
menor do que a lama, em caso de rompimento. Por isso, o potencial de dano é
menor. No entanto, a falta de fiscalização e de transparência quanto aos
cálculos que definem as dimensões das pilhas preocupam.
“Isso faz com
que a probabilidade de rompimento de uma pilha, hoje, seja maior do que a de
uma barragem, que já tem regulamentações e critérios de licenciamento mais
rigorosos”, disse o engenheiro.
Na Agência
Nacional de Mineração (ANM), órgão do governo federal responsável pela gestão
de mineradoras, o assunto só entrou na agenda regulatória para o biênio de 2025
e 2026, o que significa que a pauta só vai começar a ser discutida neste ano.
Júlio Nery,
diretor de assuntos minerários do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram),
entidade que representa as mineradoras, afirma que o setor já segue o Padrão
Global da Indústria para Gerenciamento de Rejeitos, o que inclui o empilhamento
a seco.
ANM não tem cronograma de vistorias
Em 2024,
técnicos da ANM vistoriaram 180 barragens, de acordo com o relatório anual do
órgão. Esse é um dado que não existe em relação às pilhas, porque não há um
cronograma de vistorias, nem “uma equipe dedicada exclusivamente para essa
fiscalização”, segundo a agência.
Também não
existe “um cadastro que permita rastrear a quantidade de vistorias específicas
de pilhas”. Segundo a agência, as pilhas de rejeitos são vistoriadas “junto às
ações rotineiras”.
Enquanto a lei
12.334, de 2010, criou a Política Nacional de Segurança de Barragens, com
critérios para monitoramento, normas de controle e padrão de segurança, nada
disso existe em relação às pilhas.
Além disso,
informações técnicas sobre as barragens estão disponíveis em bancos de dados
públicos, como o Sistema Integrado de Gestão de Barragens de Mineração. Já
informações sobre as condições estruturais das pilhas e os critérios para que
sejam licenciadas não existem.
De acordo com o
engenheiro Júlio Grillo, faltam dados importantes sobre o cálculo para o preparo
da base das pilhas e para definir a altura máxima que essas estruturas podem
ter.
“A pilha rompeu
em Conceição do Pará, porque a base não foi preparada adequadamente para
aguentar o peso”, disse o especialista, sobre o deslizamento na mineradora Jaguar
Mining, que Lexandra observou de dentro de casa.
A pilha no
povoado tem, atualmente, 80 metros de altura. Isso é mais que o dobro do Cristo
Redentor, que tem 35 metros. A área é de aproximadamente 16 hectares, quase o
tamanho do estádio Maracanã, que tem 18 hectares. De acordo com a última
informação repassada pela Jaguar Mining para a ANM, o desabamento movimentou um
volume de cerca de 640 milhões de litros.
Questionada
sobre qual a altura e as demais medidas que foram autorizadas no projeto de
licenciamento da pilha, a Jaguar Mining respondeu que a estrutura “não tinha
atingido sua altura e volume máximos e operava de acordo com licenciamento
junto aos órgãos reguladores”.
A Secretaria de
Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), de Minas Gerais,
informou que “os aspectos geotécnicos das pilhas extrapolam o escopo do
licenciamento ambiental” e que a ANM é a responsável por essa análise técnica.
Já a agência
federal disse que a licença de operação “é de responsabilidade do órgão
ambiental”, no caso, a própria Semad, e que vinha sendo renovada
automaticamente desde 2012. A ANM informou que vistoriou a pilha nove vezes
desde 2009, sendo a última em 2021. Nessas ocasiões, "ocorreram publicação
de exigências, autuações, interdições parciais relativas a diversos aspectos do
empreendimento".
Mineradoras dizem seguir padrão internacional
Segundo
relatório anual exigido das mineradoras pelo código de mineração, o país tem
mais de 3 mil pilhas de rejeito, estéril ou mistas.
Dessas, 232 são
apenas de rejeitos, sendo 41 da mineração de ferro -- que produz as pilhas mais
altas -- e de ouro, que tem as substâncias mais tóxicas, como arsênio, cianeto
e mercúrio.
Para Carlos
Bruno Ferreira, procurador do Ministério Público Federal em Minas Gerais, as
mineradoras estão apostando nas pilhas de rejeito não apenas por ser uma
estrutura com menor potencial de risco, mas também porque falta regulação.
“A partir do
momento que o minerador não tem obrigações para cumprir, que pode deixar a
pilha sem equipamentos que verifiquem a solidez da estrutura, sem o equipamento
de vídeo e sem uma equipe de segurança, como eu verifiquei no caso da Jaguar
Mining, se torna mais simples colocar os rejeitos em forma de pilha”, disse.
Segundo o
diretor do Ibram, Júlio Nery, a entidade é responsável por duas normas técnicas
que tratam dos parâmetros para a construção das pilhas de estéril e barragens.
Elas funcionam como recomendações definidas pelo próprio setor e não têm força
de lei.
De acordo com
essas normas, o projeto para instalação de uma pilha de rejeito deve incluir,
entre outras coisas, plano de monitoramento e inspeções, estudos sobre grau de
risco e um plano de ação de emergência. “Elas existem desde a década de 1990 e
são periodicamente revisadas”, afirma o engenheiro.
O diretor do
Ibram afirmou ainda que as dimensões das pilhas “podem variar em função da
topografia, dos locais de disposição, da geologia local e a localização
geográfica”.
Ao menos quatro deslizamentos desde 2018
A deputada
federal Duda Salabert (PDT-MG) mapeou quatro ocorrências com pilhas de rejeito
ou de estéril em seis anos. Ela é autora de um projeto de lei que pretende
regulamentar aspectos de segurança para as pilhas de mineração.
A proposta está
na Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados desde novembro de 2024, à
espera de um relator.
O caso mais
grave e recente foi o de Conceição do Pará, em Minas Gerais. Sete casas foram
atingidas e cerca de 250 pessoas tiveram que ser
realocadas. Nenhum morador pode voltar ao povoado, mais de
quatro meses depois do acidente.
Um acordo entre
a Jaguar Mining, a Defensoria Pública de Minas Gerais e o Ministério Público
Federal foi assinado em março de 2025 e define os termos para indenizações.
Alguns moradores poderão voltar a suas casas, mas ainda não foi concluída a
delimitação da área de segurança.
Em nota, a
Jaguar MIning disse que tem prestado todas as informações aos órgãos
fiscalizadores e regulatórios para o esclarecimento das causas da ruptura
parcial da pilha".
O primeiro caso
de deslizamento foi em 2018, na cidade de Godofredo Viana (MA). A pilha de
estéril da mineradora de ouro Aurizona deslizou, bloqueando a única via de
acesso e deixando uma comunidade isolada. Cinco anos depois, em 2023, outro
deslizamento aconteceu na mesma região. A estrada ficou interditada por seis
dias.
Já em 2022, uma
erosão na pilha de rejeitos da mineradora AngloGold Ashanti, assustou moradores
de Santa Bárbara (MG). A empresa confirmou que o problema foi causado pelas
fortes chuvas no período.
Riscos com a chuva
Segundo o
engenheiro Euler Cruz, presidente do Fórum Permanente São Francisco, uma
entidade da sociedade civil que se dedica à segurança e à qualidade de vida da
população que vive em áreas de mineração em Minas Gerais, o empilhamento a seco
é um tipo de tecnologia que não está totalmente dominado.
As estruturas,
segundo o engenheiro, não estão sendo planejadas para suportar o maior volume
de chuvas, devido às mudanças climáticas. “Os sistemas de drenagem são
projetados com dados pluviométricos de 40 ou 50 anos atrás. Não se leva em
conta as chuvas torrenciais que vemos agora”.
O engenheiro
Júlio Grillo concorda: “As pilhas não vão provocar desastres tão grandes como o
rompimento de uma barragem, mas, certamente, vão sucumbir às chuvas fortes mais
rapidamente”, disse.
Para evitar
novos e mais graves acidentes, Grillo aponta três caminhos:
·
O processo de
licenciamento não pode ser baseado em autodeclarações;
·
Qualquer
empreendimento minerário tem que estar comprovadamente adequado aos eventos
extremos de chuva;
·
É preciso
aplicar o princípio da precaução e da prevenção. As mineradoras têm que
comprovar de forma transparente que a pilha a ser licenciada é sustentável a
longo prazo.
Fonte: G1
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