Opinião: Jon Jones deixa legado complicado de celebrar

Campeão de duas divisões do UFC é
inquestionavelmente o melhor lutador de todos os tempos, mas questões na
condução de carreira e fora do octógono mancham sua imagem
O anúncio da aposentadoria de Jon Jones no
último fim de semana foi um microcosmo de todo o seu tempo como pessoa pública.
Ao mesmo tempo que o campeão de duas divisões de peso do UFC foi celebrado pela
carreira mais dominante e impressionante da história do MMA, sua hombridade era
questionada por se afastar do esporte justamente quando estava pressionado a
enfrentar um jovem desafiante que parecia ter as ferramentas para ser seu maior
obstáculo até hoje. E poucas horas depois, seu caráter foi exposto com mais um
caso de polícia fora do octógono, uma constante por toda sua trajetória.
O legado de Jon Jones é
complicado. Mesmo se separarmos o homem do atleta (falarei mais sobre isso
adiante) e focarmos apenas no que ele fez no esporte, ainda assim é difícil
apreciar completamente tudo o que ele fez no octógono. Pelo currículo, e pelo
olhômetro, "Bones" é indubitavelmente o melhor lutador de MMA de
todos os tempos. Em 30 lutas oficiais, ele raramente esteve sequer ameaçado de
sair derrotado e dominou praticamente todos seus oponentes sem deixar de ser
espetacular e criativo no processo.
Eu mesmo vi pessoalmente três
dessas performances: a luta contra Glover Teixeira, a primeira
luta contra Daniel Cormier e a revanche contra Alexander Gustafsson. Duas
das três foram à decisão dos juízes; se ele perdeu dois desses 13 rounds, foi muito.
Contra DC, foi a atuação mais impressionante: tirou para nada um lutador que
tinha pedigreé de wrestling superior ao seu, que vinha atropelando todos pelo
caminho. Ainda o derrubou múltiplas vezes, sem ceder quedas.
Sua única derrota oficial foi
por uma desclassificação polêmica numa luta que ele estava vencendo, por
desferir um golpe (cotoveladas de cima para baixo) que recentemente deixou de
ser ilegal numa revisão das regras. Jones venceu a geração anterior a ele
(Shogun, Rampage, Lyoto, Rashad, Belfort), venceu seus contemporâneos
(Gustafsson, Cormier, Glover) e venceu a geração seguinte (Anthony Smith,
Marreta, Reyes) no peso-meio-pesado, antes de subir de peso e conquistar a categoria mais perigosa da luta, contra um
ex-campeão interino (Ciryl Gane) e o maior campeão da história dos pesados do UFC (Stipe
Miocic).
Por outro lado, seus feitos
no meio-pesado sempre terão um asterisco devido aos resultados positivos para
doping que apresentou em algumas lutas e períodos fora de competição, particularmente
os que causaram o cancelamento de sua revanche contra Daniel Cormier no
UFC 200, em 2016, e que anularam sua segunda vitória sobre DC em 2017.
Jones retornou em 2018 e venceu novamente Gustafsson, mas só lutou porque a Agência Antidoping dos EUA (Usada, na sigla em inglês)
julgou que outro resultado positivo apresentava quantidades ínfimas, que não
lhe conferiam vantagem injusta - algo muito contestado por toda a mídia e
público na semana da luta. Para muitos, o histórico de doping é
um sinal de insegurança de Jones, que trapaceou para se tornar o maior de
todos.
Falando em insegurança, a
subida de Jones ao peso-pesado, embora tenha ratificado sua posição como melhor
da história, foi marcada por duas lutas que não aconteceram. A primeira foi
contra o camaronês Francis Ngannou. Ele era o campeão da categoria quando Jon
anunciou, ainda em 2020, que subiria de peso. Contudo, o estadunidense não
estreou entre os pesados até 2023, coincidentemente quando Ngannou encerrou seu
contrato com o UFC e decidiu assinar com a PFL, uma concorrente
da companhia. Portanto, quando conquistou o cinturão, "Bones" não
precisou vencer o campeão anterior; disputou o título vago com um ex-campeão
interino.
A segunda luta que não
ocorreu foi contra o inglês Tom Aspinall, atual campeão interino. A insistente
recusa de Jones em enfrentar Aspinall, um lutador cinco anos mais jovem e com
habilidades que casam bem com seu jogo, pegou mal. Por mais que seus argumentos
tenham alguma validade - o currículo do britânico não se compara ao seu,
vencê-lo não acrescentaria quase nada ao seu legado e ele não quer servir de
trampolim para um novato - a justa percepção dos fãs é de que "Bones"
tinha tanto medo de ver seu cartel manchado com uma derrota "de
verdade" que preferiu se aposentar. Se este medo existia (e eu não
acredito nisso), não deveria: uma derrota também não mudaria nada no legado de
Jones.
A notícia de que Jon Jones
é acusado de fugir da cena de um acidente de trânsito,
publicada pela mídia estadunidense no último domingo (22), porém, reforça a
fama de "fujão" do lutador e lembra outro motivo pelo qual, por mais
que seus resultados no octógono sejam inquestionáveis, sua lembrança para os
fãs talvez não seja a melhor possível. "Bones" coleciona casos de polícia
em sua carreira, com uma reincidência impressionante em acidentes de carro
enquanto dirigia intoxicado. E, assim como neste caso mais recente, o lutador
saiu correndo da cena do episódio mais grave de sua vida pública, a batida com
outros dois veículos, incluindo uma mulher gestante como vítima da colisão, em
2015; capítulo que custou a Jones seu cinturão dos
meio-pesados do UFC enquanto resolvia seus problemas legais.
Não é questão de julgar
alguém por seus erros isolados. Todos somos suscetíveis a erros e acidentes,
mas imprudência no trânsito é um delito grave, e ainda mais com a reincidência
impressionante de Jones - pelo menos sete casos de acidente de trânsito desde
2011. E isso sem contar outros casos ainda mais sérios, como a acusação de violência doméstica contra a mãe de suas
filhas em 2021. Tudo isso enquanto tentava passar uma imagem de
bom moço cristão que simplesmente não condiz com suas atitudes por trás das
câmeras - algo que foi exposto por um vídeo vazado de uma entrevista em que ele
interagia com Daniel Cormier com vocabulário vulgar antes de entrar ao vivo,
quando mudava completamente e ficava respeitoso.
Também vi pessoalmente esta
"cara de pau" de Jones. Naquela mesma ocasião da primeira luta contra
Cormier, realizada em 3 de janeiro de 2015, eu e algumas colegas o avistamos
numa boate em Las Vegas na festa de Reveillón, três dias antes do evento. Na
manhã seguinte, aconteceu um "media day" com os lutadores do card e,
ao ser indagado sobre como passou a noite de Ano Novo, o rosto dele "nem
tremeu" ao afirmar que ficou em seu quarto "rezando com a
família". Algumas semanas depois, saiu o resultado de um exame antidoping
que apontava presença de cocaína no organismo de Jon nas semanas antes do
combate.
A cada novo caso, porém,
Jones recebia um passe, um tapinha nas costas, um "desta vez passa, mas vê
se não repete, hein!" Várias liberdades condicionais, poucos dias de
cadeia, e mesmo quando rompia os termos da condicional, nenhuma punição mais
alta. O mais grave que aconteceu com ele foi perder o cinturão em 2015... Que
ele recuperou em 2016 interinamente. E mesmo após a reincidência no doping, ele
pôde voltar em 2018 e se tornar campeão novamente. Talvez por isso, sigamos
vendo Jones cometendo os mesmos erros um atrás do outro, sem jamais aprender a
lição.
Já disse repetidamente neste texto,
e vou concluir dizendo mais uma vez: Jon Jones é o melhor lutador de MMA de
todos os tempos, e seus concorrentes estão bem distantes no momento. Mas tudo
que cerca sua carreira no octógono torna muito difícil celebrá-lo. Para mim, é
um nome inegável, que sempre será lembrado, mas longe de ser um ídolo.
Fonte: G1
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